Crédito das fotos: Karen R. Igari

Crédito das fotos: Karen R. Igari

quarta-feira, 26 de março de 2014

"O milagre das folhas"

 Não, nunca me acontecem milagres. Ouço falar, e às vezes isso me basta como esperança. Mas também me revolta: por que não a mim? Por que só de ouvir falar? Pois já cheguei a ouvir conversas assim, sobre milagres: "Avisou-me que, ao ser dita determinada palavra, um objeto de estimação se quebraria." Meus objetos se quebram banalmente e pelas mãos das empregadas. Até que fui obrigada a chegar à conclusão de que sou daqueles que rolam pedras durante séculos, e não daqueles para os quais os seixos já vêm prontos, polidos e brancos. Bem que tenho visões fugitivas antes de adormecer - seria milagre? Mas já me foi tranquilamente explicado que isso até nome tem: cidetismo, capacidade de projetar no campo alucinatório as imagens inconscientes.
 Milagre, não. Mas as coincidências. Vivo de coincidências, vivo de linhas que incidem uma na outra e se cruzam e no cruzamento formam um leve e instantâneo ponto, tão leve e instantâneo que mais é feito de pudor e segredo: mal eu falasse nele, já estaria falando em nada.
 Mas tenho um milagre, sim. O milagre das folhas. Estou andando pela rua e do vento me cai uma folha exatamente nos cabelos. A incidência da linha de milhões de folhas transformadas em uma única, e de milhões de pessoas a incidência de reduzi-las a mim. Isso me acontece tantas vezes que passei a me considerar modestamente a escolhida das folhas. Com gestos furtivos tiro a folha dos cabelos e guardo-a na bolsa, como o mais diminuto diamante. Até que um dia, abrindo a bolsa, encontro entre os objetos a folha seca, engelhada, morta. Joga-a fora: não me interessa fetiche morto como lembrança. E também porque sei que novas
folhas coincidirão comigo.
 Um dia uma folha me bateu nos cílios. Achei Deus de uma grande delicadeza.


(Clarice Lispector)


Foto tirada em Bragança Paulista
Foto tirada em Bragança Paulista, em 12/2013.



terça-feira, 25 de março de 2014

"Sentir de novo..."

Sentir de novo este chão
áspera terra. Áspera mas terra
onde nascem ervas tranquilas
como beijos em família.
Plantar os pés novamente, pois
raiz sem solo é amor sem uso.
Já sonhei altura e vôo
e o que eu vi? Bloco maloca
apartamentos. Volvi
crestados os cabelos
e a pureza animal.
A alma e a carne pesam 
e o vôo é simples circunstância.
Cansando, porém calmo, regresso.
E sob meus pés
renasce o minúsculo quintal.

(Yoji Fujyama)


Foto tirada em Lambari
Foto tirada em Lambari, MG, em 03/2014.



"Arte de ser feliz"

 Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor. Outras vezes encontro nuvens espessas. Avisto crianças que vão para a escola. Pardais que pulam pelo muro. Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais. Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar. Marimbondos: que sempre me parecem personagens de Lope de Vega. Às vezes, um galo canta. Às vezes, um avião passa. Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino. E eu me sinto completamente feliz.
 Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem diante das minhas janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.


(Cecília Meireles)


Foto tirada em Lambari
Foto tirada em Lambari, MG, em 03/2014.



sábado, 22 de março de 2014

"Podia-se ficar (...)"

Podia-se ficar tardes inteiras pensando. Por exemplo:
quem disse pela primeira vez assim: nunca?


(Clarice Lispector)


Foto tirada em Caraguatatuba
Foto tirada em Caraguatatuba, em 06/2011.


"Fique de vez em quando sozinho (...)"

Fique de vez em quando sozinho, senão você será
submergido. Até o amor excessivo dos outros
pode submergir uma pessoa.


(Clarice Lispector)


Foto tirada em Caraguatatuba
Foto tirada em Caraguatatuba, em 01/2014.


"Se uma pessoa (...)"

Se uma pessoa fizesse apenas o que entende,
jamais avançaria um passo.


(Clarice Lispector)


Foto tirada em Pedra Bela
Foto tirada em Pedra Bela, em 12/2013.


"É preciso parar"

  Estou com  saudade de  mim. Ando um  pouco recolhida, atendendo
demais ao telefone, escrevo depressa, vivo depressa. Onde está eu?
  Preciso  fazer  um retiro  espiritual  e  encontrar-me enfim - enfim,
mas que medo - de mim mesma. 


(Clarice Lispector)

Foto tirada em Caraguatatuba
Foto tirada em Caraguatatuba, em 01/2014.